PUBLICAÇÃO NO BLOGUE FORNECIDO POR JOSÉ LOURENÇO

This blog post is also available in English

©BARILLET-PORTAL David
©BARILLET-PORTAL David

Vírus transmitidos por vetores (ex. mosquitos, carraças) estão a (re)emergir e a ter consequências negativas para a saúde pública e para as economias locais. Exemplos típicos recentes de vírus transmitidos por mosquitos incluem o vírus West Nile na América do Norte, Israel e Europa, e os vírus Zika, dengue, chikungunya, Mayaro e febre amarela na América do Sul e África. A epidemiologia, ecologia, e evolução destes vírus são altamente diversas,  mas todos eles partilham um fator crítico: o seus potenciais de transmissão são altamente dependentes da dinâmica de população das espécies de mosquitos envolvidas.

Um dos objetivos principais do controlo de doenças infeciosas é prevenir o inicio (ou alterar o curso) de  epidemias. Para esse fim, modelos dinâmicos de transmissão têm sido usados com sucesso desde meados do século XX (ex. no contexto de malaria). Esses modelos são aproximações computacionais dos sistemas biológicos reais, permitindo simular uma multitude de cenários nos nossos computadores pessoais, e com tal testar, reconstruir e projetar o potencial e comportamento epidemiológico de patógenos. Quando tais simulações são comparadas com observações reais (ex. número de casos reportados por um sistema de vigilância), os modelos oferecem respostas sobre a mecânica de transmissão e os fatores epidemiológicos ou demográficos que terão contribuído para determinados padrões observados nos dados. Enquanto que modelos dinâmicos são uma das peças fundamentais da epidemiologia contemporânea, dados imperfeitos ou a falta deles pode tornar difícil (se não impossível) a conceção, implementação e utilidade esses modelos. As razões pelas quais dados podem ser imperfeitos são várias, desde sistemas de vigilância fracos, erros humanos, falta de investimento, etc.

Mosquito Culex em um dedo humano.

No contexto de patógenos transmitidos por mosquitos, dados são geralmente imperfeitos ou não existentes (ex. dados entomológicos são raros e dados epidemiológicos são pouco representativos da prevalência real do patógeno).  Como resposta, uma nova classe de métodos chamados índices de suitability (ex. Brady et al. 2014, Kraemer et al. 2019) têm emergido recentemente na literatura cientifica. Esses índices têm a capacidade de estimar o potencial de transmissão de  patógenos transmitidos por mosquitos sem o uso de modelos dinâmicos, dados epidemiológicos ou dados entomológicos. Os índices geralmente dependem de uma combinação complexa de fontes de dados, incluindo temperatura, chuva, humidade, vegetação, urbanização, altitude, presença de reservatórios de água, densidades populacionais de humanos e outros hospedeiros, etc. A forma ou intensidade com que estas variáveis influenciam o calculo de um índice de suitability é tópico de grande discussão, mas existe consenso no papel importante do clima. Os efeitos de variáveis como a temperatura, chuva e humidade nas populações de mosquitos são facilmente testados em ambientes laboratoriais, e existe uma vasta quantidade de dados que demonstram, por exemplo, como temperatura influencia a esperança de vida de mosquitos adultos ou a velocidade de propagação viral no corpo de mosquitos adultos (período de incubação).

No nosso estudo recentemente publicado em Methods in Ecology and Evolution, eu e os meus colaboradores introduzimos e demonstramos P, um índice de suitability. P é informado por dados climáticos e resulta de uma simplificação da expressão matemática do número reprodutivo básico (R0) de um patógeno transmitido por mosquitos. Essa expressão matemática inclui parâmetros essenciais através do uso de expressões matemáticas obtidas em experiências laboratoriais sobre os efeitos do clima nos mosquitos (ex. como a temperatura afeta a esperança de vida do mosquito). A interpretação biológica de P é o potencial (reprodutivo) de transmissão de cada fêmea adulta de mosquito infetada numa população de hospedeiros completamente suscetível (interpretação semelhante à do R0). Com o objetivo de tornar P acessível para investigação e educação, nós desenvolvemos e oferecemos o R-package MVSE (Mosquito-borne Viral Suitability Estimator).

Aplicação do índice P ao vírus da dengue

O vírus da dengue é um patógeno transmitido entre mosquitos to tipo Aedes e humanos, sendo comum em zonas (sub)tropicais do globo. P pode ser usado de várias formas para estimar o potencial do vírus da dengue. Por exemplo, com acesso a séries temporais de temperatura e humidade é possível reconstruir  o potencial passado do vírus. Nós incluímos aqui um exemplo focado na cidade do Recife (Brasil), ao calibrar alguns parâmetros típicos relacionados com mosquitos Aedes, o hospedeiro humano e o vírus da dengue (figura A, à esquerda). É possível então verificar se o potencial reconstruído é representativo do comportamento epidémico da dengue na cidade. Dado que P em Recife é altamente representativo do comportamento epidémico (figura A, ao centro), é então possível concluir, por exemplo, em que alturas do ano transmissão é esperada, alta, baixa, etc. Seria ainda possível usar variáveis climáticas projetadas no futuro (ex. estimadas em estudos meteorológicos de alteração de clima) de forma a estimar o potencial futuro do vírus (um projeto em curso na nossa instituição de investigação).

Example of index P estimation for the city of Recife and its comparison to epidemiological data. To the right, a map of South America with mean yearly index P.
Exemplo de estimação do índice P à esquerda, comparado com dados de incidência ao centro para a cidade do Recife. Mapa com o índice P estimado para a América do Sul à direita.

Ter a capacidade de estimar o potencial de transmissão ao nível de uma cidade ou aldeia é fundamental para informar iniciativas de controlo e saúde pública local. Mas ocasionalmente,  perspetivas do potencial de transmissão a um nível geográfico superior são úteis (ex. para identificar hotspots de potencial num país inteiro). Com o R-package MVSE, essas perspetivas podem ser geradas através do uso de dados climáticos de satélite (ex. World Clim). O mapa da América do Sul aqui apresentado (figura A, à direita) é um exemplo em que o índice P foi estimado numa grelha com resolução espacial de 18 por 18 Km para os quais temperatura e humidade estavam disponíveis (World Clim). O mapa torna claro alguns dos padrões epidemiológicos conhecidos da dengue na América do Sul. Por exemplo, o potencial de transmissão alto na Colômbia e Venezuela, o potencial baixo ao longo dos Andes, alto no Norte e Este do Brasil e baixo no Sul do Brasil. Na nossa publicação incluímos outros exemplos do uso do índice P para além de dengue e da América do Sul.

Aplicação do índice P a patógenos como o vírus West Nile

O conceito e formulação matemática do índice P não são restritos a hospedeiros, patógenos ou vetores específicos. Por exemplo, para patógenos transmitidos por carraças, as relações matemáticas entre variáveis climáticas e o vetor podem ser facilmente introduzidas na expressão matemática de P. Igualmente, para patógenos zoonóticos (i.e. dependentes de um outro hospedeiro animal) o índice P pode ser estimado ignorando o hospedeiro humano, calibrando o hospedeiro existente na expressão de P como o hospedeiro animal, e mais tarde interpretando P como uma medida de probabilidade de spill-over para a população humana.

Example of index P estimation for Italy and comparison to geo-referenced reported West Nile cases.
Exemplo de estimação do índice P à esqueda, comparado com dados de incidência ao centro para Itália em 2018.

Como exemplo, nós calibrámos P para o vírus West Nile, o hospedeiro para aves e o vetor para mosquitos do tipo Culex. É possível ver pelos mapas na figura (Figura B, à esquerda), que o índice P captura as zonas da Itália onde casos de West Nile são usualmente reportados. De futuro, esperamos que outros investigadores usem o índice P e o R-package MVSE para explorar e investigar uma variedade de patógenos transmitidos por vetores.

Potencial para educação

Enquanto que na publicação nos focamos no lado da investigação, aqui argumentamos também a utilidade do índice P para educação. Por exemplo, alunos de programas de epidemiologia ou saúde pública estarão familiarizados com o conceito de R0, pelo que o conceito do índice P será facilmente adaptado e compreendido. MVSE é também implementado em R, que é a plataforma mais comum para biologia computacional a nível global, facilitando o seu uso. Por fim, o índice P pode servir como pivot para tópicos críticos do século XXI, como a importância de alterações climáticas para o presente e futuro de doenças infeciosas, ou os determinantes de spill-over de sistemas ecológicos selvagens.

Para descobrir mais sobre o índice P e MVSE, aceda ao nosso artigo Open Access em Methods in Ecology and Evolution:MVSE: An R‐package that estimates a climate‐driven mosquito‐borne viral suitability index’. (Subscrição não é necessária)